Livro x Filme: Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago
- Rapha
- 14 de mar. de 2018
- 4 min de leitura
Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.

“Tenho de abrir os olhos, pensou a mulher do médico. Através das pálpebras fechadas, quando por várias vezes acordou durante a noite, percebera a mortiça claridade das lâmpadas que mal iluminavam a camarata, mas agora parecia-lhe notar uma diferença, uma outra presença luminosa, poderia ser o efeito do primeiro lusco-fusco da madrugada, poderia ser já o mar de leite a afogar-lhe os olhos. Disse a si mesma que ia contar até dez e que no fim da contagem descerraria as pálpebras, duas vezes o disse, duas vezes contou, duas vezes não as abriu. (...) Como estará a perna daquele, perguntou-se, mas sabia que neste momento não tratava de uma compaixão verdadeira, o que queria era fingir outra preocupação, o que queria era não ter de abrir os olhos.”
José Saramago adora escrever ensaios. Ele busca, na maioria de suas obras, partir duma premissa “e se...?”. No caso deste livro, temos “E se todos de repente ficassem cegos?”. E, diferente da cegueira comum, onde você é cercado pela escuridão, aqui no livro os personagens são acometidos pela ‘cegueira branca’, descrita como um mar de leite diante dos olhos.

O livro começa com o primeiro cego (Yusuke Iseya), um homem comum dirigindo seu carro, e fica cego de repente. Começa toda aquela confusão estressante de um veículo parado no meio da rua até que um ‘bom samaritano’ ajuda o primeiro cego a ir para casa. Já é legal acompanhar esse personagem pelas suas inseguranças, medo de ter sua visão tirada sem mais nem menos, e como ele se torna assustando e dependente da esposa (Yoshino Kimura), que o leva no oftalmologista assim que chega em casa.

Já no consultório, passamos a acompanhar mais personagens, que estão lá por motivos diversos: o velho da catarata (Danny Glover), o menino estrábico, a rapariga dos óculos escuros (a maravilhosa Alice Braga) com conjuntivite, além do próprio médico (o queridinho Mark Ruffalo). Este, ao chegar em casa, comenta com a esposa (Julianne Moore) o estranho caso que teve hoje com o paciente da cegueira branca, que perdeu a visão de uma hora pra outra. Ao acordar no dia seguinte, entra em choque, pois cegou também. E assim vai se alastrando a cegueira branca, que diferente da normal, parece se propagar por contágio nas pessoas.
A cegueira branca então se alastra como gripe pela cidade, e o governo rapidamente toda uma decisão: mandar todos os novos cegos para quarentena, que se dá num hospício abandonado. Cercados e contidos por militares, eles recebem refeições em determinada hora do dia, mas tudo o que acontece dentro do hospício (como limpeza e organização de espaço) fica por conta dos cegos.

Vamos aqui destacar a personagem, que pra mim é a principal, dada como mulher do médico. Sim, ela não tem nome, assim como todos os outros personagens do Saramago, ele não costuma nomear as coisas (a própria cidade em que acontece essa catástrofe é só “cidade”, então você fica livre pra imaginar qualquer lugar do mundo). Ela, após saber que todos os cegos estavam sendo mandados para a quarentena, fingiu que ficou cega para ir junto do marido. Então ao chegar no hospício, ela começa a ser a grande organizadora do espaço, uma vez que é a única que ainda vê, começa a amarrar cordas entre as câmaras, ensina os caminhos até o banheiro e muito mais.

Talvez a personagem mais complexa do livro, a gente vai acompanhando seu desenvolvimento, aonde ela deixa de viver para si e passa a viver cuidado de todos os cegos, a cada dia mais numerosos, jogados ali à própria sorte.
O filme Blindness foi lançado em 2008, e produzido pelo Japão, Brasil e Canadá. Isto talvez explique o elenco bem diversificado, que conta com brasileiro, mexicano, japoneses e norte-americanos. E ganhou uma caralhada de prêmios do cinema brasileiro, como maquiagem, fotografia, direção de artes e efeitos especiais. Tudo muito bem merecido, já que o filme tem esse tom claro de luz branca que nos ‘cega’ por uns momentos, grande sacada.

Bem fiel à obra, tem um ritmo lento que lembra o livro, mas mesmo aos poucos muita coisa acontece. Os atores conseguem passar bem toda a confusão, medo, insegurança e desespero que tais situações trazem.

A única cena que me deixou querendo mais foi a do supermercado, aonde a mulher do médico entra em desespero ao se ver sozinha num escuro armazém, aonde sua visão, que até agora era sua única vantagem, a deixa na mão e ela precisa se virar sem isto. Todo o desespero dessa cena te deixa angustiado.
E os vários debates que Saramago trás por entrelinhas, que muito me lembra uma música do Capital Inicial: “O que você faz quando/ Ninguém te vê fazendo/ O que você queria fazer/ Se ninguém pudesse te ver?”

Num mundo aonde todos são cegos, como se organizar? Qual vantagem você teria sobre o outro? E como controlar aquilo que é seu, se você não o vê? Definitivamente um livro que te deixa pensando dias e dias.

A minha dificuldade maior foi sem dúvida o jeito que Saramago escreve, desenfreado, sem travessões ou parágrafos, que deixa a leitura um pouco cansativa. É difícil achar pontos para parar e retomar depois, o que exige uma leitura contínua que não é fácil por ser densa. Muitas vezes me vi perdida sem saber o que tinha acabado de ler e fui obrigada a voltar. Mas mesmo assim, a proposta do livro é excelente, e mal posso esperar para ler outras obras do autor.
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